uma carta de amor

Marta Leite Montagnana
2 min readMar 20, 2024

Você me faz acreditar que existe um tanto de magia nas coisas.

Talvez tenha sido um pouco estranho eu comprar esses presentes antigos, usados, para te dar. Estranho pra mim, mesmo, apesar da grande admiração que nutro por eles, não são novos, como aparentemente um presente deveria ser. Mas eles me fazem pensar sobre o uso das coisas que fazemos e sobre relacionamentos, com as coisas, com as pessoas.

Um relógio de corda! Gente, quando foi que paramos de produzir/comprar isso? Algo que não precisamos repor bateria, jogar fora nada. Precisamos única e exclusivamente dedicar 5 segundos de energia diária para dar corda e ele seguir funcionando, nos dando as horas e nos dando esse som regular que pode ser perturbador pra muita gente (hoje), mas que pra mim soa como um aviso do tempo, de que o tempo segue passando. Aquele lembrete suave que me ajuda a pensar os usos que eu faço do meu precioso tempo. Afinal, tempo é uma das poucas coisas que temos de fato, penso. Tempo e corpo. O isqueiro vejo como um objeto em si que hoje substituímos pelos descartáveis, novos corpos. Mas tem aquele pensamento que nos rodeia, não existe jogar fora, tá tudo nesse planeta, os lixos só saem do nosso campo de visão. Então esses isqueiros, recarregáveis, metálicos, também não sei porque não prezamos mais por eles além de como objetos de fetiche, de ostentação. Pois bem, eles também falam a respeito dessa atenção regular que devemos ter para recarregar, para mantê-lo funcionando. Esses objetos me falam, portanto, sobre afeto. Sobre cuidados, sobre alimentar uma relação, pode ser sobre alimentar um corpo também. Um corpo único que temos e temos que cuidar, uma vida única, este tempo fechado que não sabemos qual é, mas que acaba. Que não é possível trocar a bateria ou então jogar fora e comprar outro.

Esse texto não foi previsto e me saiu de supetão. Mas esses pensamentos me rondaram e eu vi muito de tanto que a gente fala e faz, nessas ideias. Um ponto muito positivo nessa reflexão toda é ver (mais uma vez) que temos alimentado há tanto tempo nossa relação e ela segue nessa manutenção de afeto, respeito e vínculo crescente, como um corpo único e não descartável, mas que tem vida.

Amo-te.

Agora que os apetrechos não estão funcionando, mas podem voltar a funcionar a depender de tempo, dedicação e talvez recursos, vejo que apesar da grande frustração que me pegou, consegui até pensar de uma forma que faz bastante sentido. Sobre fazer a manutenção necessária juntos. Já falamos que gostamos de trabalhos manuais e restauros. Assim, a responsabilidade não é só minha e nem só sua. Acho mesmo que conseguiremos fazê-los voltar a funcionar!

(uma carta de amor para uma relação despedaçando)

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Marta Leite Montagnana

caipira, feminista, produtora cultural mamando nas tetas da Lei Rouanet, artista sem talento formada na balbúrdia, calígrafa e tatuadora nas tantas horas vagas.